sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A EUROPA VAI SER COMPRADA PELA CHINA E ARABES

Sexta-feira, Agosto 27, 2010

A Europa vai ser comprada pela China e pelos príncipes árabes




A Europa vai ser comprada pela China e pelos príncipes árabes

A Alemanha quer o euro porque quer redesenhar o mapa monetário mundial. A China quer o euro porque não quer ficar sozinha com os EUA. Portugal, para sobreviver, vai ter de tirar partido da globalização. No cenário, optimista, de a globalização sobreviver à crise.

José Manuel Félix Ribeiro, economista, em véspera de aposentação, foi subdirector-geral do Departamento de Prospectiva e Planeamento (DPP) e foi aí que produziu os mais conhecidos exercícios de cenarização sobre a economia portuguesa, sobre os futuros possíveis da Europa ou do mundo. Raramente dá entrevistas. O que pensa é o produto de uma mente brilhante somada a uma vasta informação sobre o que se passa no mundo: em Pequim ou na casa real saudita, nos sectores mais inovadores dos EUA ou na prodigiosa empresa de petróleos norueguesa. Evita opiniões taxativas sobre o país. Fornece hipóteses num contexto internacional de profunda incerteza. Polémico e pessimista.

Vivemos uma tripla crise: mundial, europeia e nacional. Podemos começar por aquela que mais nos condiciona, a crise europeia. Como é que a Europa pode sair daqui?

Estive recentemente na Universidade Católica do Porto para falar dessa questão e resolvi fazer uma coisa sobre a Europa, o euro e a China. A minha ideia, que pode estar completamente errada, é que temos de começar por compreender por que é que os alemães foram forçados a aderir ao euro e que o euro, na prática, não é uma resposta europeia à globalização. É, antes do mais, uma resposta à unificação alemã.

E uma resposta política, antes de ser económica.

Política. Não vejo que a Alemanha queira sair do euro nem que a sobrevivência do euro esteja em causa. Penso que a Alemanha tem uma ambição, que esta crise veio fortalecer, que é a de redesenhar o mapa monetário mundial. O que uma parte da elite alemã gostaria era que tivéssemos um sistema monetário com três pólos: o dólar, o euro e o yuan chinês. Há uma parte dessa elite que vive muito mal com o modelo anglo-saxónico de capitalismo e com o seu domínio da economia mundial. Nessa medida, seria um suicídio colocar em causa o próprio euro, porque é ele que lhe dá, apesar de tudo, uma outra dimensão para negociar este sistema tripolar que o marco dificilmente teria mesmo que fosse agora reinventado.

A Alemanha quer preservar o euro mas em que condições?

O que está em causa é a necessidade de consolidar o controlo sobre o euro para que possa ter um papel muito mais importante no futuro. E esse controlo tem de ser acompanhado por outra coisa: a Alemanha quer pagar o menos possível para salvar economias que vê como relativamente inviáveis.

As economias da Europa do Sul?

Sim. E o problema é que hoje a Europa do Sul, ao contrário do que aconteceu nas décadas anteriores, já não é um mercado fundamental para a Alemanha e os alemães vêem-na como um peso que não querem ser os únicos a ter de suportar.

Está a dizer que a Alemanha ficaria satisfeita se os países do Sul saíssem do euro? Isso não seria a sua condenação?

Não vou dizer isso, porque não sei. Essa é a discussão sobre o que quer realmente a Alemanha. Apenas acho que não quer sair do euro, a não ser que seja completamente forçada. Eles quiseram pregar um grande susto à Europa. Mas mesmo um grande susto. Querem impor alguma ordem. Não sei se querem mais alguma coisa.

A UE, tal como existe, ainda é aquela que serve os interesses mundiais da Alemanha?

O que me parece é que os alemães têm uma estratégia clara na qual a China e a Rússia são chave. A China, para venderem aquilo que produzem, e a Rússia para comprarem energia e também desenvolverem a industrialização. Entre a Rússia e a China, a Alemanha tem uma nova estratégia. Mas também admito que não possa separar-se completamente dos Estados Unidos. O ideal, para ela, era que os EUA se dessem bem com a Rússia. Isso favorece o jogo alemão porque pode pôr em prática [a sua estratégia] sem ter de fazer escolhas.

Onde é que entra a China?

A Alemanha sabe que pode contar com a China porque Pequim não quer ficar sozinha com o dólar para o resto da vida. A China é a única entidade no mundo convictamente empenhada - pelo menos enquanto esta direcção lá estiver - em que o euro não se afunde. Quer ter outro parceiro que não seja apenas o dólar e, portanto, no que puder ajudar, fá-lo-á. Comprar dívida emitida por entidades europeias...

Já está a fazê-lo.

Só que há aí um outro problema: a China não sabe muito bem o que é isto da União Europeia, deve fazer-lhe alguma confusão esta coisa de 27 países que decidem tudo numa grande conversa. Precisa de alguém em quem confiar e acho que confia na Alemanha. Os alemães sabem que têm as costas quentes, que a entidade mundial que mais pode ajudar o euro está com eles. Estão relativamente à vontade. Quem deve estar relativamente aflito é a França. São os que vierem a seguir [a Merkel e a Sarkozy] que vão ter, ou não, alguma capacidade para se entender.

Sobre quê?

Não sei. Mas a essa pergunta só se pode responder com outra: os outros países, que não a Alemanha, para onde é que podem ir? Para lado nenhum. A Alemanha está bastante à vontade.

Mas há também fragilidades dentro da própria Alemanha que não tornam as coisas assim tão simples. A Alemanha tem dois problemas. O primeiro é que é uma economia muito exportadora mas não é inovadora. Não há nada de novo que a Alemanha tenha criado nos últimos 50 anos. É extraordinária a melhorar aquilo que já faz há quase 150 anos: automóveis, mecânica, química. Está muito bem adaptada para fornecer países que se industrializam, que se urbanizam e que se motorizam. Mas tem uma grande dificuldade em inovar sobretudo quando as economias desenvolvidas passaram a ser economias terciárias. No sector dos serviços, já praticamente não há um nome alemão.

Isso quer dizer que o seu modelo pode esgotar-se rapidamente?

Isso quer dizer que está esgotado e que ainda tem vida apenas porque há economias emergentes. O segundo problema é que o modelo alemão, em termos financeiros, é totalmente oposto ao dos EUA e ao do mundo anglo-saxónico - é um modelo centrado nos bancos.

Os alemães continuam a poupar muito e a colocar muitos depósitos nos seus bancos. Esses bancos tinham tradicionalmente uma relação muito estreita com a indústria alemã, para onde canalizavam o seu dinheiro. O que acontece é que hoje a grande indústria alemã financia-se nos mercados de capitais, que são uma invenção anglo-saxónica. Com muitos depósitos a afluir e com menos negócios tradicionais para aplicar o dinheiro, eles tiveram de ir à procura de aplicações altamente rentáveis e foram comprar coisas como o subprime, do qual foram os segundos grandes compradores. Importaram um vírus que o seu sistema imunitário não tem capacidade para gerir. E, então, para tentar obter novas receitas que lhes permitissem apagar os prejuízos que aquilo ia criar, lançaram-se a comprar dívida soberana dos países do Sul [da Europa].

E estão amarrados de pés e mãos.

É essa a minha opinião. E isso é uma segunda grande fraqueza, que limita a margem de manobra alemã. Os espanhóis já percebem isto perfeitamente e sabem que um default desorganizado da Europa do Sul lhes seria fatal... Isso faz com que haja um factor de coesão mas, ao mesmo tempo, de muita tensão: os espanhóis não gostam de ser maltratados e os alemães de estar amarrados.

O modelo alemão tem as limitações que descreveu. O modelo anglo-saxónico está a atravessar uma crise. Como é que a China joga com isto?

Não sei, mas admito que quem deve estar assustado são os chineses.

É preciso compreender a crise financeira de 2008. Os EUA são uma economia que tem défices correntes com toda a gente - com a Europa, com os produtores de petr? leo, China, Japão, Taiwan. E isso é uma coisa absolutamente lógica. Os EUA permitiram que a Ásia se desenvolvesse ao transferirem para lá a produção de muitas das coisas que consomem. O que acontece é que nenhum dos outros possui um sistema financeiro próprio capaz de reciclar essa quantidade toda de dólares e, por isso, tem de recolocá-los nos EUA. A questão fundamental é que os Estados Unidos têm de produzir activos em que toda a gente confie e queira comprar como forma de colocar as suas poupanças. O grande problema que penso estar na base desta crise financeira foi que, pela primeira vez, os EUA não tinham activos suficientes para colocar. O Lehman, o Morgan Stanley, eram absolutamente cruciais na economia mundial porque são eles que transformam latão em ouro e que o colocam à venda no mundo inteiro. Não vale a pena dizer que a crise se deve a um bando de gananciosos. O grande problema, que pode marcar o fim da globalização e o declínio americano, é a incapacidade de produzir esses activos.

Este modelo de globalização tem de ter sempre no seu centro os Estados Unidos, com os seus défices. Que funcionam como uma espécie de capital de risco do mundo inteiro.

A China tem a noção disso?

A China precisa dos EUA mas não quer que a Europa desapareça do mapa e fará tudo para ajudar a mantê-la. Já está a comprar títulos de dívida gregos e espanhóis.

A questão é outra. A Espanha andou a criar uns leitõezinhos que já são muito apetitosos: a Telefónica, a Repsol, a Iberdrola, etc. No nosso caso, a Galp, por exemplo. Penso que esta crise é aquela em que alguém vai dizer: meus caros amigos, é altura de os leitões irem para o mercado para serem comprados por quem tiver dinheiro para comprar. O pior que pode acontecer nesta crise é haver uma transferência maciça da propriedade no Sul. É os chineses comprarem tudo o que lhes interessa na Grécia - o Pireu, os armadores...

E em Espanha e Portugal?

Os árabes, talvez. A Europa vai ser salva pelas compras dos chineses e dos árabes e, no caso português, também dos angolanos. Esta é a parte económica, que pode ser muito complicada pela parte geopolítica.

Como?

Em boa medida, por causa da energia. O abastecimento energético da China é um problema-chave para o seu futuro. Eles tinham três hipóteses de o resolver. A primeira era irem para o off-shore do Mar do Sul da China, mas aí tinham um grande problema. A China é uma entidade que não existe, economicamente falando. Tem a fatia costeira que faz parte do mundo da globalização e tem o resto. Esta parte costeira viveria muito bem sem nenhuma ligação com esse resto, da mesma maneira que vivem os coreanos, os japoneses, os taiwaneses, exportando produtos e importando o que não têm. Esta zona próspera e em crescimento - foi esta zona que os EUA arrancaram do atraso - tem toda a vantagem na continuação da globalização, dificilmente pode viver sem ela.

Se os chineses fossem para a opção do off-shore, esta região ainda ficava mais independente e ainda precisaria menos do resto da China. O poder em Pequim tem perfeita consciência do risco que isso comporta e, por isso, defende uma segunda hipótese, a hipótese continental, em que tem de ir buscar o petróleo e o gás à Rússia e, sobretudo, à Ásia Central, que tem de atravessar toda a China. Isso permite-lhes convencer essa China da faixa litoral de que precisa do resto do país e de que precisa do poder central para organizar isto tudo.

A terceira alternativa é dizer: para já, vamos ao Golfo Pérsico e a Angola buscar a energia de que precisamos. Isso tem um problema: as linhas de comunicação marítimas são extensíssimas e quem garante a sua segurança é a América. A dada altura deve haver uns almirantes loucos em Pequim que vão dizer: temos de constituir uma grande marinha. E no dia em que decidirem fazer isso a guerra está no horizonte.

Isso contraria a nossa ideia de que o desenvolvimento ajudará a integrar a China.

Ninguém liga nenhuma a estas coisas mas elas são fundamentais. O poder em Pequim tenta resolver este imbróglio optando pela Ásia Central. Mas aí vamos ter ao Afeganistão. No dia em que os americanos saírem, vamos ter a Índia, que não quer que os chineses vão para lá; os russos, que não querem que os chineses vão para lá; e os chineses que vão entrar lá de mãos dadas com os taliban com que estavam a negociar antes do 11 de Setembro. Porque o controlo sobre o Afeganistão é a chave para uma estratégia de abastecimento por via da Ásia Central. É a única que lhes permite resolver o problema dos almirantes loucos.

Ou as rotas ou o Afeganistão?

E uma terceira, que é quando [a secretária de Estado Hillary] Clinton vai ao Vietname e declara que os EUA querem pacificar o Mar do Sul da China, que é precisamente onde os chineses também podem ir buscar petróleo. Em todos os sítios onde eles querem ir buscar petróleo, os americanos estão envolvidos.

Neste jogo global, qual é o papel da Europa?

A Europa vai ser comprada pela China e pelos príncipes árabes.

E se isso, por hipótese, acontecer, que papel lhe resta?

Vai dividir-se em dois grupos. O Reino Unido já foi à Índia dizer que os paquistaneses eram uns patifes, porque sabe que eles são os aliados da China para este jogo. O que [o primeiro-ministro David] Cameron foi lá dizer agora foi o seguinte: nós estamos com a Índia e não com a China. Está a ver perfeitamente o jogo e ficará deste lado.

Quanto aos árabes, ainda não consigo perceber verdadeiramente o que querem. Há na OPEP um conjunto de gente que quer atacar a importância do dólar e deixar de depender de um dólar que eles temem que vá colapsar.

E também lhes interessa apostar no euro?

Exactamente. Vão continuar a dispor de grandes excedentes que lhes dão para comprara a Repsol e os outros leitõezinhos. Vamos ter uma Europa cheia de príncipes nos conselhos de administração e de chineses a financiar os Estados. E isso vai permitir que a Europa sobreviva.

Sobreviva?

É o nosso pequeno mundo. O grande mundo é a OPEP e também o Irão, a China e os EUA.

Como é que nós, portugueses, nos vamos adaptar a esta nova situação?

Penso que os alemães simpatizam connosco. Investiram cá, têm uma boa experiência, e não fizemos nada recentemente que os levasse a mudar de atitude. Portugal acumulou um capital relativamente à Alemanha que é positivo e que o distingue da Grécia. Mesmo passando entre os pingos da chuva, não estamos assim tão mal no nosso relacionamento político.

Com a Alemanha? Nos cenários que fez em 2002 colocava três alinhamentos possíveis - a opção ibérica, o alinhamento francês e a "Casa de Borgonha", que seria com o Benelux. A ibérica está em discussão - entre eles e entre nós. A França está em situação difícil e o Benelux falhou.

Não sei. Eu estou à janela e apenas posso dizer: aquele que está a passar ali vai ser atropelado. Penso, no entanto, que a Holanda continua a ser crucial e, quando a Bélgica se desintegrar, a Flandres pode ser a nossa maior amiga. É preciso reflectir muito sobre isto, mas creio que há três países que nos interessam: a Alemanha, a Holanda e a Noruega.

A Noruega?

A Noruega devia ser o nosso aliado principal por causa do petróleo, do mar e da exploração da plataforma continental.

Alguns dos cenários do exercício que fez mais recentemente [Portugal 2025 - que funções no espaço europeu, cuja recente actualização considera quatro cenários: "Florida Europeia", "Plataforma Asiática", "Escócia do Sul", "Ponte Atlântica"] consideram a plataforma energética que poderíamos constituir como relevante.

Exacto. Por isso, a Noruega é um parceiro possível - é atlântico e está muito próximo da UE. Fizemos um trabalho sobre as empresas energéticas na Europa e a Statoil [norueguesa] é uma coisa extraordinária - a forma como eles conseguiram estar no mundo inteiro. Mas falo da Noruega se decidirmos fazer uma aposta na plataforma continental, na sua extensão. Os alemães podem também estar interessados, porque não têm mar. Mas entre alemães, noruegueses e holandeses... A Noruega e a Holanda são o mundo atlântico. A Alemanha é o mundo europeu de que não podemos fugir.

Isto não tem de ser contra a Espanha...

Mas há um elemento permanente na cenarização para 2025 que passa pela ideia de que não deveremos ser apenas a fachada atlântica da Espanha.

Esse problema existe, só que uma parte da elite portuguesa não o quer ver. O actual Governo era "Espanha, Espanha, Espanha". Cavaco Silva era "Espanha, Espanha, Espanha". Temos de ter uma boa relação com a Espanha. Isso está fora de causa, mas temos de ver é como é que fazemos isso.

Voltando aos cenários. Parece-me comum a todos que a geografia volta a ganhar peso, depois de ter sido, de algum modo, absorvida pela Europa. É essa a mudança?

A questão central é que, em qualquer dos cenários, Portugal tem de se tornar mais atractivo. Na nossa encarnação anterior, não precisávamos de ser particularmente atractivos. Bastava sermos bem-comportados, cumpridores das normas europeias. Isso até nos criou alguma respeitabilidade. Íamos subindo os degraus.

O que me parece é que, neste estado de tensão em que a Europa vai estar, temos de ter uma maior consciência daquilo que podemos querer.

Que já não pode ser o mesmo?

O nosso percurso de convergência com a UE foi interrompido há 10 anos e agora agravado pela crise.

A resposta que foi dada à crise por este Governo é muito interessante. É uma resposta de emergência, mas o facto é que fomos ter à Líbia, Argélia, Venezuela e Angola. A primeira razão é o petróleo. Mas há outra coisa em comum: à excepção de Angola, todos têm relações tensas com os EUA. Fomos à procura de parceiros que estão completamente fora do nosso alinhamento estratégico, embora pudessem dar bons negócios. Conseguiu-se aumentar as exportações para esses países. O primeiro-ministro fez como Paulo Portas: passou a ir às feiras. Estava habituado a andar nos supermercados e passou a ir às feiras. Não estou a pôr isso em causa, possivelmente não podia fazer outra coisa...

É aí que entram os outros cenários. Num dos que considera, podemos transformar-nos numa plataforma intercontinental alinhada com a Ásia, em que o investimento que substitui o alemão é o asiático...

Mas que se insere muito bem nesta estratégia da Europa próxima da Ásia... O primeiro-ministro chinês, nas declarações que fez sobre o euro, disse que não nos podemos esquecer que a Europa é sempre um campo de investimento prioritário para a China.

E há ainda outro cenário que é o "escocês"...

Esse é apenas se houver descobertas de petróleo e de gás no nosso off-shore, o que provocaria uma grande mudança. Mas mesmo não havendo petróleo, esse cenário não é impossível. Utilizei a ideia da Escócia porque ela se desenvolveu muito fornecendo serviços de engenharia para o Mar do Norte. Desse ponto de vista, a bacia da África Ocidental podia ser o nosso Mar do Norte. Essa função podia ser desenvolvida aqui e o Brasil pode ser um parceiro fundamental.

No outro cenário, o da "ponte atlântica", estamos com o Brasil mas mais numa posição subalterna. É a ideia de que a CPLP pode ter indonésios, australianos - é aquele em que podemos tentar fazer do mundo de expressão portuguesa uma força. Penso, no entanto, que só temos interesse nisso se conseguirmos alinhar mais o mundo de expressão portuguesa com o mundo de expressão anglo-saxónica. Porque o primeiro, sozinho, nunca tem muita força.

O que também há de comum é a ideia de que deveríamos aproveitar melhor a globalização...

Estes cenários são do DPP, mas são feitos por mim. Se o DPP tivesse de se pronunciar hoje, preferiria que eu nunca os tivesse feito. Está numa posição muito melindrosa. A maneira como encaram isto, os mais novos, é diferente. Tudo isto foi feito por uma geração - a nossa - que foi ensinada desde pequena na gestão dos conflitos e na paixão pelos conflitos. A geração deles é a geração da procura da felicidade.

Só que a crise mundial obriga-nos a pensar no que pode correr mal.

O grande problema é que a adesão à moeda única teve como consequência uma fuga generalizada perante a globalização. Quem se endividou mais não foi o Estado, foram os bancos, para alimentar o consumo interno. E esse consumo é uma forma de alimentar as exportações alemãs e italianas, etc. Isso teve duas consequências: facilitou as importações e criou uma atracção enorme pela terra e pelo investimento no imobiliário como grande forma de obter lucro. As famílias podem consumir importando porque têm financiamento bancário e o sector empresarial tem uma oportunidade enorme em torno da terra - da terra para os portugueses e depois, pelos PIN [Projectos de Interesse Nacional], a terra para estrangeiros. Foi esse o esquema que nos levou a uma situação muito complicada. Temos cada vez menos para oferecer para o exterior. O facto de deixarmos de importar não acho mal, o problema é que se criou um sector de emprego muito grande à volta daquilo que se importa. Basta ir aos centros comerciais.

E os grupos económicos e a banca vivem do mercado interno.

No ano passado, a ANEOP [Associação Nacional dos Empreiteiros de Obras Públicas] fez uma publicação maravilhosa que dizia o seguinte: a construção, ela própria, representa 8 por cento do PIB em 2009; o cluster da construção no sentido mais alargado - matérias de construção, promoção imobiliária, serviços ligados à habitação, obras públicas - representa 18 por cento do PIB e absorve 72 por cento da totalidade do crédito concedido pelo sistema bancário. O que sobra é para as PT, as EDP e o resto é nada. É um problema diabólico.

Precisamos de atrair investimento, o que pode implicar várias coisas, entre as quais um sistema fiscal mais competitivo.

A fiscalidade não é tudo. Trouxemos cá o presidente da Infosys [empresa indiana líder mundial nas tecnologias da informação], o senhor Murty, para uma coisa sobre as tecnologias da informação. Queríamos trazer alguém de topo no sector e que fosse indiano. O senhor foi capa da Time mas aceitou vir cá com muita facilidade, trouxe a mulher e umas amigas da mulher que eram goesas, foram aos Jerónimos e tudo isso. A certa altura, quando o trazíamos do aeroporto, perguntámos-lhe porque é que nunca tinha investido em Portugal. Ele respondeu que, para isso, tinha que ter resposta a algumas perguntas prévias. Quais eram as perguntas? Como é que é a relação das vossas crianças com a matemática; a partir de que ano é que escrevem e falam inglês correctamente; como é que estão de talentos; e quantos engenheiros informáticos formam por ano.

Quando foi isso?

Em 2007. Levámo-lo à Agência de Investimento, onde foi muito bem recebido e lhe explicaram que Portugal era fantástico, não tinha greves, era flexível, o IRC era de 25 por cento. Ele ficou calado todo o tempo. Até que lhe perguntaram o que é que achava. Ele respondeu mais ou menos isto: "Achei tudo muito interessante, mas só quero fazer uma pergunta: eu posso premiar os melhores ou não?"

Essas quatro coisas que ele mencionou têm todas a ver com o capital humano e nada com fiscalidade.

Absolutamente. E a outra, tem a ver com o processo de organização social. O que estou a dizer é que, por exemplo, para uma fábrica de automóveis a questão dos impostos é chave. Mas para ter empresas informáticas ou clínicas de alta qualidade, pode não ser tão importante. Isso obrigaria a ver, em primeiro lugar, o que é que queremos atrair nesta fase e o que podemos atrair. E até podemos concluir que é muito mais importante no futuro não ter um IRS muito pesado sobre os quadros do que ter um IRC baixo para as empresas. O cenário da Florida, por exemplo, tem muito mais a ver com talentos.

Já produzimos alguns talentos mas a tendência parece ser a de se irem embora.

Essa questão só se resolve com investimento estrangeiro. E a única alínea da política industrial de um país como Portugal é a atracção de investimento.

Olhando para os cenários que nos projectam mais na globalização, onde é que precisamos de apostar?

Este trabalho que fizemos agora para a ANEOP está muito centrado nas infra-estruturas para lhes chamar a atenção de que, conforme os cenários, assim será a actividade no sector. O cenário da "plataforma asiática" é o mais exigente em infra-estruturas. Grande aeroporto, porto de águas profundas (Sines), caminho-de-ferro para mercadorias para a Europa.

Mas não vale a pena pensar em infra-estruturas se não estivermos, ao mesmo tempo, a atrair os investimentos que necessitem delas. É isso que me custa a perceber, não sermos capazes desse exercício... Temos de encontrar quem são os actores que estão interessados em vir para aqui. E isso não se pode definir à partida, embora haja coisas que se podem saber. Penso, por exemplo, que devemos olhar para Estados intersticiais como Singapura ou o Qatar, com pouca base territorial, mas ligados ao mundo e que precisam de bases. Devíamos olhar para eles como aliados para fazermos aeroportos ou portos de águas profundas ou para termos parceiros para a TAP.

Onde é que vamos encontrar os actores políticos, económicos, sociais para conseguirmos isso?

O que vai tornar este período mais difícil é ainda não se saber exactamente a natureza desta crise. Se esta crise for uma crise de rearrumação da globalização, quem estiver cá a governar vai ter de exercer funções que antes não eram precisas por causa da Europa. Vamos demorar tempo até nos adaptarmos a esta nova realidade e vai levar tempo a que a classe política evolua. Isso não quer dizer que a Europa não tivesse sido boa. Mas criou, em simultâneo, um modelo de funcionamento que não gera as exigências que agora vão ser precisas. As pessoas espantam-se que os dirigentes políticos tenham perdido qualidade. Era inevitável. Era um grupo que devia apenas seguir o que se decidia em Bruxelas, não era preciso mais.

Agora, vamos atravessar um processo dramático onde vão aparecer muitos falsos profetas mas em que o nível vai mesmo ter de acabar por subir. Imagino que sim.

Por Teresa de Sousa

Fonte: Jornal Publico

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