Da estrutura da fome
A fome e a vontade de comer
O
universo dos blogues recuperou um extraordinário texto do ordinário (no
sentido não pejorativo do termo) Paulo Pedroso, antigo ministro da
Solidariedade. O texto, velho de um ano na prática e de décadas na
teoria, é um excelente exemplo dos argumentos por detrás do ódio ao
Banco Alimentar (BA) em geral e à sua presidente, Isabel Jonet, em
particular.
A
tese, se tamanha infantilidade merece o nome, é a de que o BA não passa
de um sistema de escoamento dos excedentes dos supermercados, o qual
alivia "as consciências sem resolver nenhum problema estrutural".
Através de evidências, meias-verdades e cabeludas mentiras (os que doam
os serviços ao BA não se reduzem a "escuteiros e toda a rede de
voluntários ligada à Igreja Católica"), só falta ao dr. Pedroso
reproduzir a linda rábula do peixe, da cana e do pescador para concluir,
cito, que prefere dedicar a sua "energia" a "perguntar-se" o que pode
"fazer para que diminua este tipo de procura de bens alimentares
enquanto a senhora Jonet escoa a oferta".
Talvez
seja altura de questionar o dr. Pedroso sobre se a energia que dedica e
as perguntas que se faz já deram frutos e respostas. Aposto que não
deram: pensar "estruturalmente" a pobreza é tarefa de uma vida e, à
semelhança de matutar acerca do destino desta, não leva a lado nenhum.
Ou leva a cargos em governos, universidades, fundações, observatórios e
empresas "públicas" empenhadas em não suprir as necessidades de nenhum
desgraçado até que se possa satisfazer todos os desgraçados da Terra em
simultâneo. A "caridade" que tanto repugna o dr. Pedroso compõe a
barriga de mil, dez mil ou cem mil famintos, mas isso de nada serve
quando não se resolve os problemas que tornam a fome possível, ainda que
o processo demore séculos. E se, no entretanto, o pessoal continua à
míngua, trata-se de um pormenor que não afecta a cósmica generosidade do
dr. Pedroso, corajosamente indiferente a casos individuais e apenas
interessado no "conceito". Em tempos, os ricos tinham, e alimentavam, o
"seu" pobrezinho. Gente como o dr. Pedroso chama a si os pobrezinhos em
peso - desde que não precise de alimentar nenhum.
Não
acredito na bondade "pura". Não me custa aceitar que Isabel Jonet
também se mova por ambições íntimas, incluindo desejos de notoriedade ou
outros. A questão é que, no processo, há pessoas que infelizmente
precisam do trabalho da senhora e dele aproveitam. Em contrapartida,
abro uma excepção para o dr. Pedroso e similares, que possivelmente são
guiados pelas melhores intenções e pelo mais cristalino altruísmo sem
que daí resulte qualquer benefício para alguém - excepto, vejam lá a
ironia, os benfeitores.
Agora
a sério, mesmo que o dr. Pedroso dificulte a tarefa: não me esqueci do
autor da maior acção de caridade da história do regime. Falo,
evidentemente, do "rendimento mínimo", proeza de propaganda que incluía a
"superficialidade" inconsequente que o dr. Pedro critica no Banco
Alimentar sem incluir o voluntariado que, em prol da coerência, o dr.
Pedroso continua a detestar: no RSI (eufemismo actual), os donativos são
arrancados à força.
O reino dos céus
Perante
as críticas do Papa Francisco ao capitalismo e aos "mercados", as
pessoas que gostam do Vaticano recordam que isso não é mais do que a
costumeira doutrina social da Igreja. As pessoas que abominam o Vaticano
acham que a retórica é novidade e não só vai arrasar o capitalismo e os
"mercados" como, se a coisa correr pelo melhor, arrasará a Igreja. Eu,
neutro na matéria, prefiro notar que, apesar do aparente embaraço de uns
e do evidente entusiasmo dos outros, o próprio Papa talvez fizesse
melhor em começar por comentar o desemprego, a pobreza e a fome nos
felizardos países sem inclinações capitalistas e nos quais os mercados
se limitam aos lugares onde o povo compra, quando consegue comprar,
hortaliças e galinhas. Se a devoção materialista tem muitos defeitos,
uma virtude ninguém lhe nega: não se confunde com nenhuma das
maravilhosas alternativas disponíveis.