Um exemplo
das condições de verdadeira escravatura em que o trabalho está a ser exercido
no Portugal das troikas
17 de Agosto de 2013
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Trabalhar num
call center é viver num mundo de pobreza, instabilidade,
pressões e humilhações. O centro da PT em Coimbra é descrito por muitos como
“um inferno”
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Para Nuno, o pior de tudo era ter de enganar os
clientes. Trabalhou no enorme call center da Portugal Telecom em Coimbra, antes
de vir para a Teleperformance, em Lisboa. Em Coimbra trabalhou no sector
outbound (quando é o operador que faz a chamada, geralmente para vender) da
MEO. “Tínhamos de dar a entender às pessoas que, se não comprassem o serviço
MEO, ficariam sem televisão, o que era mentira”, recorda Nuno, ao PÚBLICO.
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Era
o período em que foi introduzida a Televisão Digital Terrestre (TDT). Quem não
tinha qualquer serviço por cabo teria de instalar um descodificador para
continuar a ter sinal de televisão. Não era necessário aderir ao MEO, mas os
operadores só explicavam isto se o cliente o perguntasse explicitamente. As
instruções que tinham eram claras quanto a isto.
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Carlos ainda trabalha no call center da PT de
Coimbra. Ou melhor, em teoria é empregado da Vertente Humana, uma empresa de
trabalho temporário com a qual tem um contrato de 15 dias, renovável
automaticamente, embora com uma curiosa modalidade de funcionamento.
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Carlos, que vende igualmente serviços da MEO, conta
que também é obrigado a enganar os clientes. Ao contactar clientes de outras
redes, aliciando-os a aderirem ao serviço M4O, tem instruções para não referir
nunca que o cliente terá de mandar desbloquear o seu telemóvel, com os custos
implícitos. Só se tal for perguntado explicitamente – “E eu terei de mandar
desbloquear o meu telemóvel?” o operador pode confirmar. Mas se o cliente
perguntar, por exemplo, “E não terei de fazer mais nada? O serviço fica logo
disponível?”, o operador está proibido de lhe dizer que terá de mandar
desbloquear o telemóvel.
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Se o cliente, mais tarde, se sentir enganado e protestar,
o operador é penalizado. Carlos relata outro caso, que aconteceu no mês
passado. Na venda do serviço M4O (que inclui chamadas grátis de telemóvel), os
operadores têm instruções para nunca dizer ao cliente que, ao aderir, terá
anulado todo o saldo que possa ter no Cartão Sim. Mais uma vez, só poderá dar
essa informação se o cliente se lembrar de o perguntar explicitamente. Ora no
caso em questão o cliente chegou a dizer, na tentativa de recusar a oferta:
“Mas eu tenho muito dinheiro no cartão…” Não era a pergunta certa, e Carlos não
lhe pôde dizer que todo o seu saldo de 90 euros seria anulado. Quando
descobriu, o cliente protestou.
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“Fui penalizado por causa disso, na minha remuneração
variável”, conta Carlos, “apesar de eu ter ao meu lado uma folha onde está
escrita claramente essa regra, que eu não posso informar o cliente”.
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O call center da PT em Coimbra vive
essencialmente da mão-de-obra dos estudantes da universidade. Na opinião dos
operadores (que não confirmámos junto da PT) a ideia de colocar o centro de
atendimento na cidade deve-se a esse motivo.
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A carta de despedimento
No período de férias universitárias, a PT emprega
outras pessoas, que não estudantes, que muitas vezes são despedidas mal se
inicia o ano lectivo. Dito de uma forma mais técnica, a rotatividade dos
trabalhadores é enorme. Todos os que contactámos afirmaram estar contratados
por agências de trabalho temporário, e terem contratos de 15 dias. Mas eis como
funciona: a meio de cada mês, o trabalhador recebe em casa uma carta de despedimento.
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Com alguns, isto acontece quase todos os meses, com
outros, em apenas alguns meses por ano. Depende da produtividade, e
eventualmente de outros factores. Carlos acaba de receber uma, registada, como
sempre. Data: 18 de Julho de 2013. “Serve a presente… nos ternos da Lei n.º 1,
artigo 344 do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de
Fevereiro… o seu contrato de trabalho caducará a 3 de Agosto de 2013…”
Seguem-se as instruções sobre subsídio de desemprego, etc.
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Chegado ao local de trabalho, no dia
seguinte, o supervisor explica que a produtividade não tem sido a melhor, e
que, a continuar assim, o contrato não será renovado, como a carta de resto já
formaliza. “Tens 15 dias para melhorar a performance“, diz o supervisor.
Será então preciso trabalhar a dobrar, para “cumprir os objectivos”. Isso
significa trabalhar durante os fins-de-semana e dias de férias, e a
possibilidade de fazer isso ainda é considerada um grande favor da empresa,
para que o trabalhador consiga “cumprir os objectivos” e não seja despedido. Esses objectivos são fixados pelas
chefias, mas “muitas vezes a meio do mês mudam os objectivos”, diz Carlos. “A
pressão é enorme, e a instabilidade também. Há pessoas a chorar nos intervalos,
há pessoas que não aguentam.”
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Nuno, que trabalha na Teleperformance (embora o seu
contrato seja com uma outra empresa, de trabalho temporário, que pertence à
própria Teleperformance), tal como Maria, ou Júlia, que é operadora da ZON,
todos se referem à mesma instabilidade, ao salário baixo (nunca muito acima do
salário mínimo) e às formas de pressão para fazer aumentar a produtividade. A
frase que todos disseram já ter ouvido repetidas vezes, nas várias empresas, é:
“Se não estás satisfeito, a porta de saída é ali”.
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Nuno e um grupo de pessoas a trabalhar em várias
empresas de call center estão a tentar organizar-se para criar um
sindicato do sector. Reuniram-se e redigiram um Boletim para um Sindicato dos
Trabalhadores dos Call Centers, n.º 0, intitulado “Tás logado?. Chamam a
atenção para a precariedade, para os baixos salários, as formas de pressão e a
necessidade de se juntarem. Mas misturam tudo isto com um discurso muito
ideológico (com referências à Primavera Árabe e às manifestações no Brasil), o
que decerto não facilitará a adesão de pessoas que, pela natureza do seu
trabalho e vínculos contratuais, tendem a estar dominadas pelo medo.
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Os nomes de todos os operadores citados nesta
reportagem são fictícios, a pedido dos mesmos. O nosso pedido à PT para visitar
o call center de Coimbra foi recusado, com a explicação de que seria
“uma falta de respeito pelas pessoas que estão a trabalhar”. Uma entrevista com
um responsável também foi negada. Apenas chegou uma resposta por email
às nossas questões sobre os contratos e as cartas de rescisão, dizendo que “não
é verdade”.
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Quanto aos casos concretos em que os operadores são instruídos para
enganar os clientes, a “fonte oficial da PT” escreveu: “Os casos concretos que
refere não têm qualquer significado face às centenas de milhares de serviços
vendidos no M4O.”
Paulo Moura